Chiara Albino
Universidade Federal de Santa Catarina
tarsila.chiara@gmail.com

Lisabete Coradini
Universidade federal do Rio Grande do Norte
lisacoradini@gmail.com

Apresentação ao Dossiê
Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Uma definição geral de música deve incluir tanto sons quanto seres humanos. Música é um sistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunica com outros membros.
Anthony Seeger

Com a finalidade de aprimorar e estimular a discussão das temáticas em torno da música e da produção de subjetividades, a edição de volume 5, número 1, da Revista Visagem, enfoca o tema “Música e Modos de Subjetivação em perspectiva antropológica”.

Neste dossiê nos propomos a explorar a relação mutuamente constitutiva entre música e modos de subjetivação, particularmente a multiplicidade de negociação de valores que descrevem as formas pelas quais músicas produzem subjetividades e subjetividades produzem músicas, sem, no entanto, considerar tal relação como uma dicotomia, e sim como um contínuo. Esta ênfase no contínuo ao invés da dicotomia concentra-se, sobretudo, na flexibilidade descritiva dessas categorias. Ao enfatizar a relação entre música e modos de subjetivação, este dossiê lembra que os sujeitos não apenas escutam músicas, mas as valorizam moral e ideologicamente.

Além disso, neste dossiê pretendemos contribuir para pensarmos sobre os variados tipos de participação nas práticas de consumo e na produção, circulação e valorização de gêneros musicais, pois compartilhamos a convicção analítica de que são múltiplas as modalidades de engajamento. Assim, interessamo-nos por estudos que quebram dicotomias simplistas, como, por exemplo, “produtor” versus “consumidor”, entre outras. Interessamo-nos ainda por estudos analíticos que discutem a afetação mútua entre sujeitos e músicas, ou, mais precisamente, como produzem um ao outro.

Ademais, de modo a ressaltar aspectos globais e locais, nossa intenção não foi apenas tratar a relação entre música e modos de subjetivação como uma discussão culturalmente particular, mas também como intercultural e transnacional. Neste sentido, também interessamo-nos por estudos que assinalam como as mediações tecnológicas produzem músicas e modos de subjetivação, assim como o componente visual/imagético e espacial na produção musical.

As contribuições recebidas fazem parte de pesquisas em andamentos ou concluídas, que priorizaram a música e a produção de subjetividades como categorias analíticas, visando assim a construção de um quadro expressivo das principais abordagens teóricas e experiências de pesquisas empíricas sobre a articulação analítica proposta. Essas contribuições são produtos intelectuais de processos de investigação, realizadas por diferentes autores e estão organizadas em quatro seções: artigos, ensaios fotográficos, vídeos e entrevista.

Abrindo a seção Artigos, Tatyana de Alencar Jacques, Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, participa com o artigo intitulado “Gênero, Canções e Emoções nos filmes da Jovem Guarda”, no qual apresenta uma reflexão sobre o amor romântico a partir da análise dos filmes protagonizados por Roberto Carlos, Wanderléia e Erasmo Carlos lançados entre 1968 e 1971. A autora traz um diálogo entre a antropologia e a sociologia das emoções para desvelar os padrões de masculinidade e feminilidade presente nesses filmes.

Daniela Moura Bezerra Silva, Doutora em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe, argumenta sobre “Os sons e os sentidos: música e formas de representação no circuito da música brasileira em Lisboa/PT”. Nesse texto, problematiza as relações sociais que são estabelecidas a partir da prática musical – do ouvir, produzir e consumir a música brasileira em Lisboa.

Lisabete Coradini, professora titular do Departamento de Antropologia e da Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, contribui com o texto “Avisa lá que eu vou”: samba, samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya”, demonstrando como novos espaços sonoros e novas maneiras de viver a música brasileira no exterior criam diálogos, espaços de sociabilidade e a dissolução de fronteiras.

José da Silva Ribeiro, professor visitante da Universidade Federal de Goiás - Faculdade de Artes Visuais, apresenta “Sonoridades Migrantes na América Latina”. Neste texto o autor faz uma reflexão e uma revisão crítica sobre os conceitos que giram em torno do encontro entre culturas, como: hibridação, mestiçagem e crioulização.

O texto de Danielle Colares Lins, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas, “A construção das linhas e do revestimento de Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM”, é resultado de uma etnografia realizada na cidade de Parintins, AM, nos anos de 2017 e 2018. A argumentação foca na importância de se pensar em um instrumento como um agente social.

O artigo de Agenor Vasconcelos Neto, doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas, intitulado “Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm 'alma'” demonstra como a música popular articula conceitos e práticas do pensamento indígena do povo Yepá Mahsã. Para o autor a relação de afinidade que o instrumentista possui com o instrumento é mais importante do que seu local de fabricação. Nesse sentido, a música como faculdade humana é algo muito mais abrangente que discussões sobre gêneros musicais.

Nélio Ribeiro Moreira, Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará, em “Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética” problematiza sobre o uso do conceito de paisagens amazônicas (rios, florestas, animais, lugares, etc.) na construção de uma narrativa identitária, explicitando como essas imagens e representações da Amazônia aparecem na cena contemporânea da música popular de Belém do Pará.

Ribamar José de Oliveira Júnior, Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e Leonardo Lemos Zaiatz, Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, propõem no texto “A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião?” analisar a relação estabelecida entre a produção artística de sujeitos dissidentes e a difusão da música como produto midiático na contemporaneidade, através da reflexão sobre as performances de Getúlio Abelha e Pedra Homem.

O artigo de Gibran Teixeira Braga, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, intitulado “A pista é um laboratório”: corpos, afetos e experimentação em cenas de música eletrônica underground” percorre duas cenas de festas de música eletrônica underground, localizadas uma em São Paulo e outra em Berlim, para, assim, mobilizar os conceitos de “musicar” e de “prazerprocesso”.

Fechando a seção Artigos, temos o artigo de Chiara Albino, doutoranda em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, intitulado “Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades, políticas e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira”. Albino apresenta uma descrição mais ampla da noção de infregatividade, focando, ao mesmo tempo, seu sentido performativo e produtivo. Como a autora argumenta, a infregatividaderevela modos de conexões entre o material/econômico e o cultural/performativo.

Na seção Ensaios Fotográficos, contamos com o ensaio intitulado “Forró em Toulouse: uma etnografia multissituada sobre o forró como espaço performático de sociabilidade e resistência” de Sara Nuño de la Rosa García, doutoranda em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Seguindo, temos o ensaio intitulado “Lugar de Bamba, Memoria de samba: ensayos para el desfile del carnaval de la Piedade” trabalho em coautoria de Jane Seviriano Siqueira, doutoranda em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, e Anibal Cotrina Atencio, Professor do Departamento de Computação e Eletrônica da Universidade Federal do Espírito Santo.

Fechando a seção ensaio fotográficos, temos o ensaio intitulado “Dasipê: recortes da festa de nomeação masculina e feminina dos AkwẽXerente”, de Ariel David Ferreira, doutorando em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina.

Abrindo a seção Vídeos, temos o vídeo “Pascual Toro, flautero”, de María Eugenia Domínguez, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. O documentário etnográfico foi gravado entre os anos 2016 e 2019 no Chaco boreal paraguaio. O vídeo faz parte do acervo do Musa - Núcleo de estudos Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe da UFSC.

No vídeo “Musicalidade, Boi de Máscaras, Composição e Cultura Popular”, de Rondinell Aquino Palha, graduando em licenciatura em Letras na Universidade Federal do Pará, apresenta o processo de concepção de uma "marcha do boi", um ritmo singular e próprio da manifestação dos bois mascarados.

No vídeo “Artífices do som: Josias Ramos e a rabeca de Bragança (PA)”, de Bernardo Wagner M. Baptista, Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, através das narrativas de Josias Ramos, demonstra o entrelaçamento entre os saberes e fazeres da rabeca em Bragança (PA).

Fechando a seção vídeos, temos a produção coletiva do vídeo “Turma do Vinil: mil e uma formas de ouvir” de Lucca Perrone Totti, Oliver Guimarães Bastos, Pedro Luiz Fadel Ferreira e Rodrigo Bastos Torrero Diaz. Trata-se de um vídeo produzido pelos graduandos do curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) no âmbito da disciplina “Experiência do Filme na Etnomusicologia”.

Na seção Entrevista, publicamos uma entrevista com María Eugenia Domínguez, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. A entrevista foi realizada pelas antropólogas Chiara Albino e Jainara Oliveira, doutorandas em Antropologia Social do Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesta entrevista, María Eugenia fala sobre sua trajetória pessoal e acadêmica, particularmente situada no campo da antropologia social e dos estudos sobre migração, música e artes. Nesse sentido, ela também comenta sobre a marca do seu trabalho e quais correntes, disciplinas, autores/as e professores/as influenciaram sua formação e suas pesquisas.

Por fim é importante dizer que esse dossiê traz um quadro de abordagens teóricas e experiências de pesquisas empíricas, de artigos de pesquisas em andamentos ou concluídas. E é produto de uma cooperação investigativa que teve início com a organização do dossiê “Paisagens sonoras” (2017) organizado por Chiara Albino na Revista Equatorial do PPGAS/UFRN, quando à época era mestranda do PPGAS/UFRN e orientanda de Lisabete Coradini. Bem como, com a organização do Grupo de Trabalho “Musicalidades, espacialidades e imagens” durante a III edição do Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica 2018 (EAVAAM) coordenado por Chiara Albino e Lisabete Coradini. É importante ressaltar que alguns dos trabalhos que compõem o presente dossiê foram apresentados nesse Grupo de Trabalho, que tinha como objetivo realizar uma discussão aproximativa da relação mutuamente constitutiva entre musicalidades, espacialidades e imagens. Particularmente situado na confluência entre a antropologia urbana, a antropologia da música e a antropologia audiovisual, reunimos nele pesquisas em andamentos ou concluídas que discutiram, sobretudo, as musicalidades, as espacialidades e as imagens como categorias conceituais, metodológicas e interpretativas da realidade social.

Nesse sentido, podemos entender esse dossiê como uma passagem para outros projetos, outras redes, outras trocas, com a certeza de que essas nos animam a continuar no caminho de entender a música e a produção de subjetividades como categorias analíticas enriquecedoras para a investigação e o saber antropológicos.

Agradecemos aos autores pelas enriquecedoras contribuições para a publicação de mais um número da Revista Visagem. Bem como, as valiosas contribuições de nossas/os pareceristas anônimas/os, sem os quais esta edição não seria possível. Agradecemos ainda ao Grupo Visagem a parceria estabelecida. Por fim, registramos aqui nossa gratidão a todos que colaboraram neste projeto com solidariedade, compromisso ético-político e rigor intelectual.

Este dossiê é publicado em um momento de retorno do conservadorismo moral e de moralização da política, em que presenciamos a ascensão de um governo federal de extrema-direita que tem colocado em risco as estruturas do Estado democrático. Neste momento de articulação entre neoliberalismo e neoconservadorismo - dois projetos socio-históricos distintos, mas que confluem, nas últimas quatros décadas, como um marcador temporal - torna-se particularmente relevante situar este dossiê num contexto mais amplo de reflexões sobre a vulnerabilidade e a condição precária induzida. Pois, não podemos nos esquecer, trata-se de um governo que tem priorizado os cortes na área da educação, e, assim, tem induzido à precarização importantes instituições de fomento à pesquisa, como a CAPES e o CNPq.

Devido às suas políticas neoconservadoras, este governo também promoveu a extinção do Ministério da Cultura (MinC). Ao mesmo tempo, trata-se de um governo que considera algumas populações descartáveis e defende uma política de segurança que incentiva uma necropolítica (MBEMBE, 2011) de extermínio da população negra, “periférica”, indígena e LGBT(s). Nesta situação contemporânea, devemos enfatizar, presenciamos um governo que censura práticas culturais populares e periféricas. Nessa perspectiva, gêneros musicais, como o funk e o brega-funk, por exemplo, entre outros gêneros originados da “periferia”, são alvos de recorrentes ataques e desvalorização.

Neste sentido, contamos com duas capas neste dossiê. A primeira capa da edição conta com a fotografia intitulada “Brupahi”, de autoria de Ariel David Ferreira, e faz parte do ensaio fotográfico “Dasipê: recortes da festa de nomeação masculina e feminina dos AkwẽXerente”. Para Ferreira (2019, p. 315)

[E]m um momento em que há uma ofensiva aos direitos indígenas mais fundamentais em detrimento de uma exploração econômica cada vez mais voraz na região Norte do Brasil, chamo atenção ao comprometimento e dever social dos que outrora comeram, dançaram e encantaramse na mais convidativa festa dos Xerente.

A fotografia “Brupahi” nos convida a refletir sobre as nossas formas de engajamento ético, as nossas formas de responsabilidades e as nossas formas de solidariedades em relação às populações que estão sendo induzidas socialmente a condições precárias. Em um momento histórico de articulação entre neoliberalismo e neoconservadorismo, como mencionamos anteriormente, esta foto nos convida a refletir, especialmente, sobre o que significa viver junto, no sentido de um imperativo ético e político.

A capa de apresentação ao dossiê conta com a fotografia do grafite que faz parte dos muros da galeria aberta do espaço Zé Reeira, Cidade Alta, Natal, RN, de autoria de Lisabete Coradini. O sanfoneiro nos lembra os artistas da cultura popular brasileira, que muitas vezes são marginalizados e perseguidos por uma parcela da população que, usando de um discurso conservador e moralista, tenta definir o que é ou não cultura de acordo com seu viés ideológico.

Por fim, reafirmamos nosso compromisso moral e ético com nossos interlocutores e com a população que financiou nossas pesquisas. Esperamos que a “balbúrdia” nossa de cada dia continue contribuindo para a diversificação do conhecimento e “incomodando” aquelas pessoas contrárias à democratização da educação. Que a população preta, periférica, LGBT(s) e indígena continue acessando às Instituições Públicas de Ensino Superior e produzindo formas mais plurais de conhecimentos, assim como ocupando espaços antes jamais ocupados.

Desejamos uma boa leitura!

Referências

FERREIRA, Ariel. Dasipê: recortes da festa de nomeação masculina e feminina dos Akw Xerente. Dossiê “Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica”. Revista Visagem, v. 5, n. 1, 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolitica: seguido de sobre el governo privado indirecto. Santa Cruz de Tenerife, Melusina, 2011.

SANTANA, Tarsila Chiara Albino da Silva. Dossiê “Paisagens sonoras”. Revista Equatorial, v. 3, n. 5, jul/dez de 2016.

SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Tradução de Giovanni Cirino. Cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-348, 2008.