Turma do Vinil: mil e uma formas de ouvir

Lucca Perrone Totti
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
lucas_totti@hotmail.com

Oliver Guimarães Armando Bastos
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
oliverbastos@yahoo.com.br

Pedro Luiz Fadel Ferreira
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
bioff@hotmail.com

Rodrigo Bastos Torrero Diaz
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
rodrigotorrerod@gmail.com

Introdução

“Turma do Vinil” – um filme realizado no âmbito da disciplina “Experiência do Filme na Etnomusicologia”, na UNIRIO – partiu de uma questão simples: como as pessoas ouvem música. O uso do filme como mídia e metodologia de pesquisa revelou, ao longo do processo, diversas potências de articulação do tema específicas dessa prática.

O objeto de pesquisa, partindo de Rodrigo Torrero e adotado pelo grupo, surge do interesse e de certa desconfiança sobre uma narrativa recorrente: a de que, num passado distante – geralmente “coincidindo” com uma fase nostálgica da vida do narrador – a música era ouvida de maneira “ideal”, prestando total atenção, “ouvindo de verdade”.

Sem o objetivo de buscar ou produzir uma historiografia em torno do tema, o grupo iniciou a reflexão sobre a questão dos hábitos de escuta em seu próprio cotidiano, marcado por profundas transformações tecnológicas. Celulares, serviços de streaming, bluetooth, e outros trouxeram a música para novos espaços e permitiram acesso a um vasto catálogo; ao mesmo tempo, essa miríade de estímulos e possibilidades teria conferido à experiência de ouvir um caráter excessivamente fugaz e acelerado. A investigação, assim, estruturou-se no sentido de acessar criticamente esses discursos.

Estratégias de representação

O filme etnográfico, até então desconhecido pelos alunos, revelouse potente instrumento de pesquisa, ao possibilitar abordagens únicas a essa metodologia - como os recursos escolhidos para a aproximação com relação aos personagens e para o acesso às suas experiências. Foram selecionados quatro personagens – dentre eles, dois membros do próprio grupo – para que esses se filmassem escutando música em um determinado período de tempo.

Tendo em mente as problemáticas que permeiam as relações tradicionais pesquisador-objeto – incluindo aquelas envolvendo a câmera –, optou-se por uma estratégia de autorrepresentação mediada pelo uso da selfie: os participantes foram convidados a produzir por conta própria as imagens referentes às escutas, utilizando a câmera frontal de seus celulares. Não houve qualquer interferência dos realizadores nesse processo para além da proposição de se filmarem ouvindo música.

Essa escolha permitiu capturar momentos de intimidade e protagonismo não acessíveis por outros meios, com sujeitos se autodirigindo e autorrepresentando. Conforme Shipley (2015, p. 404),

[…] the selfie, rather than a singular form of technologically driven self-portraiture, is a multimedia genre of autobiography or memoir that makes the image maker into the protagonist of stories of his or her own composition.[1]

O restante do material consiste em uma entrevista com cada personagem. Entretanto, em vez de elaborarmos um tradicional roteiro de perguntas, o que fizemos – inspirados por Eu, um negro, de Jean Rouch – foi mostrar a cada um suas respectivas auto-filmagens, e deixar a câmera rolar enquanto assistiam – e falavam. Assim, o papel de interpretar as imagens e as práticas nelas retratadas foi compartilhado, com pesquisadores e personagens criando narrativas a partir do que fora gravado.

Pós-Produção: confluências narrativas

Munido desse material, o grupo se viu na etapa de costurá-lo em uma narrativa fílmica, o que implicaria uma série de escolhas sobre as cenas. Nesse sentido, a pós produção pode ser vista como antítese da horizontalidade narrativa acima exposta – visto que, no fim das contas, emerge como etapa em que os realizadores voltam a ter total controle sobre os discursos. Partindo dessa problemática, foi preciso, então, tomar um posicionamento com relação ao lugar dos pesquisadores nessa mediação. Ou seja, avaliar em que nível as ações dos realizadores nessa fase iriam manchar a proposta de autorrepresentação.

Por outro lado, Turma do Vinil surge de perguntas dos realizadores, de modo que esses também teriam voz na obra. A edição, portanto, estruturou-se visando mostrar os discursos dos personagens e, eventualmente, manipulando essas falas com o intuito de tecer o discurso fílmico do grupo. Esse jogo com o material se deu em ferramentas como a contradição entre cenas consecutivas, o uso do humor para reforçar pontos, agenciamento de expectativas – recursos argumentativos potencializados pelo uso do filme.

Conclusão

Ao fim do processo, Turma do Vinil mostrou-se capaz de abordar muito mais do que a pergunta inicial. Mostrou também como hábitos de escuta estão diretamente relacionados com outras esferas do cotidiano de cada um dos envolvidos. A constatação dessa ligação faz com que não seja possível pensar em um modo de escuta “geral” dos dias de hoje, existindo na realidade uma multiplicidade de hábitos, rituais e experiências. Percebeu-se que, em sua maioria, esses nascem de uma mediação entre o desejo de ouvir música e a situação e rotina de cada um.

Longe de uma tentativa de totalizar a experiência de ouvir música, Turma do Vinil tem seu poder em revelar os momentos pessoais dos participantes, que se filmando e falando de si abordam intimamente as questões propostas. Se a pesquisa pode ousar generalizar um diagnóstico sobre os modos de escuta atuais, seria exatamente essa metacondição de fragmentação e individualização desses hábitos.

Finalmente, realizar o curta lançou luz sobre as potências do fazer fílmico enquanto método de investigação sui generis. Considerando a condição do grupo enquanto estudantes universitários, esse fato torna-se especialmente importante ao abrir novos caminhos no fazer acadêmico, tradicionalmente apoiado no texto enquanto única forma de difusão de conhecimento.

Referências

DA-RIN, Silvio. “A estética do documentário clássico” e “Novas técnicas, novos métodos”. In: Espelho Partido. Tradição e transformação do documentário. RJ: Editora Azouge, p. 71-94; 95-108, 2004.

DENORA, Tia. Formulating Questions: The Music and Society nexus. In: Music in Everyday Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

HENLEY, Paul. Narrativas: a verdade velada do documentário etnográfico?

HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Rouch compartilhado: premonições e provocações para uma antropologia contemporânea. Iluminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, 2013.

MINH-HA, Trinh Thj. Olho mecânico, ouvido eletrônico, e a atração da autenticidade. (Tradução de NAZARIAN, Elisa). In: CAIUBY NOVAES, Sylvia & all. A experiência da Imagem na Etnografia. São Paulo. Terceiro Nome, p. 2016.

SHIPLEY, Jesse Weaver. Selfie Love: public lives in an era of celebrity pleasure, violence, and social media. American Anthropologist, v. 117, n. 2, p. 403-13, jun. 2015.

Ficha Técnica

Produção: Lucca Totti, Oliver Bastos, Pedro Fadel e Rodrigo Torrero

Participação: José Landim, Oliver Bastos, Rodrigo Torrero e Sofia Magalhães

Orientação: Erica Giesbrecht

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