Eu não sou um homem fácil
Cinema. Produção de Éléonore Pourriat. França, 2018

Carla Figueiredo Marinho Saldanha
Universidade Federal do Pará

Douglas Luís Weber
Universidade de Santa Cruz do Sul

Rita de Cassia Quadros da Rosa
Universidade de Santa Cruz do Sul

De acordo com o sociólogo Roman Krznaric Zahar (2015, p. 10), empatia é “a arte de se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo seus sentimentos e perspectivas e usando essa compreensão para guiar as próprias ações”. Esta é a proposta da produção francesa “Eu não sou um homem fácil” (Je ne suis pas un homme facile). A comédia trata do machismo de uma maneira leve e bastante explicativa, apresentando o que poderíamos chamar de uma inversão do patriarcado, para ilustrar o lugar de privilégio em que vivem os homens e a posição de subalternidade imposta às mulheres. O roteiro é assinado e dirigido por Eléonore Pourriat, cineasta que já vinha se ocupando do tema em produções anteriores.

Nesta resenha crítica, além de apresentar a produção em seus aspectos gerais, nos propusemos a refletir sobre aquelas que entendemos serem suas principais contribuições para a temática das relações de gênero. Entendendo as produções fílmicas como artefatos culturais a partir de autores como Veiga-Neto (2008), Darsie e Santos (2012), que compreendem que os mesmos interpelam os sujeitos que constituem as sociedades, buscamos problematizar a inversão de papéis entre mulheres e homens apresentada, na perspectiva dos estudos feministas e de gênero.

O filme está dividido em dois momentos: a representação inicial de uma sociedade tal qual a que vivemos contemporaneamente; e, a apresentação de uma sociedade em que os papéis de gênero se invertem (imagem 1).


Fonte: Adoro Cinema.Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-263240/ Acesso em 16 de setembro de 2018

Se inicia com a personagem principal, Damien (Vincent Elbaz), em uma sessão de terapia falando sobre uma experiência que teve quando criança. Ele relata ter aceitado usar um figurino feminino durante uma peça de teatro na escola, com o objetivo de chamar a atenção da menina por quem era apaixonado. Situação que se tornou constrangedora, uma vez que, ao entrar no palco, ele foi alvo de risos e zombaria por parte do público e da própria menina. Embora Demien afirme à terapeuta que aquele não se tratava de um trauma, mais adiante, quando colide com um poste, a experiência da infância parece ser o que desencadeou a alucinação que vem a transformar o mundo da personagem. Neste novo universo ele se vê “vestindo” a posição de subalternidade que ele próprio contribuía para sujeitar às mulheres.

Antes do acidente com o poste, Damien era um profissional de sucesso, admirado por seus colegas e por seu chefe. Na segunda cena do filme ele apresentou um aplicativo para smartphones, que tinha como finalidade registrar o número de relações sexuais dos usuários. O aplicativo foi muito bem recebido pela comissão de executivos, quase todos também homens. Tendo em vista que o app não possuía uma versão que pudesse ser utilizada por mulheres, a única mulher presente fez um questionamento a respeito disso. Damien respondeu com ironia, explicando que as mulheres não foram esquecidas, pois o aplicativo disponibilizava um menu com características físicas femininas para que os homens registrassem com quem haviam tido as relações sexuais. Em meio ao riso dos executivos presentes, a interlocutora se mostrou desconfortável. Demien então, justificou tratar-se apenas de humor, encerrando a passagem absolutamente machista expondo-a a um convite para um encontro, em pleno reunião de trabalho.

A cena é um clichê em se tratando de comédias e não apresenta surpresas, pois expõe as relações de gênero tal qual elas foram produzidas e naturalizadas. No entanto, ao longo do filme quando o mundo de Damien se inverte e as mulheres passam a ocupar lugares que as permitem exercer poder, outra situação semelhante é apresentada e neste momento sim, nos choca. Choca por que somos capazes de enxergá-la, de estranhá-la, uma vez que se trata de discriminação exercida pelas mulheres sobre os homens, situação com a qual não estamos familiarizados, o familiar se torna estranho. (DA MATTA, 1978). Neste momento se torna evidente o quanto somos capazes de tolerar relações de gênero desiguais sem sequer percebê-las, quando se apresentam da forma como foram naturalizadas – os homens em posição superior.

A autora estadunidense Judith Butler (2003), explica que é fundamental que o gênero, assim como os atributos tidos como femininos e como masculinos, sejam desnaturalizadas. Isto é, destituir do status de naturais os pressupostos sobre os quais as relações de gênero desiguais se produzem. Para que isto aconteça, é necessário colocar em discussão os comportamentos que são incentivados e aqueles que são vedados para mulheres e homens. É justamente isso que a trama apresenta de maneira bastante didática, por vezes até exagerada para que fique evidente aquilo que objetiva mostrar (imagem 2).


Fonte: Adoro Cinema. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-263240/ Acesso em 16 de setembro de 2018.

Ao retornar para casa depois da colisão com o poste, Demien se depara com um guarda-roupas repleto de vestimentas transparentes, justas e que enfatizam as “curvas masculinas”. No caminho para o trabalho é alvo de cantadas e assovios. É alertado para que tenha cuidado, pois estaria usando uma blusa com transparência, segundo seu colega, “insinuante demais”. Tem seu projeto recusado em benefício de outro, que embora não fosse melhor, foi elaborado por uma mulher. Acaba sendo assediado por sua chefe, que propõe aumentar suas chances de aprovação de projeto, desde que tenha relações sexuais com ela. Demien, que até certo ponto do filme não entendia bem o que se passava, não suporta a injustiça sofrida com a reprovação do projeto, se revolta, insulta a chefe e acaba sendo demitido por justa causa. Mais à frente é aconselhado a buscar apoio amparo com um grupo masculista[!].

A história segue trazendo uma série de situações em que os homens sofrem diferentes formas de discriminação em uma sociedade femista , ou seja, em que as mulheres e o feminino predominam. Importante ressaltar que se percebe o cuidado na utilização dos termos. O termo femista não deve ser confundido com feminista[!](aquelas que lutam contra desigualdade de gênero). Femista seria um atributo das relações que se baseiam na opressão que as mulheres exercem sobre os homens, assim como machista significa a opressão que os homens exercem sobre as mulheres. A ideia de luta contra a desigualdade de gênero é retratada em vários momentos do filme – principalmente buscando trazer a interpretação da busca por direitos iguais a partir dos movimentos feministas (imagem 3).


Fonte: Adoro Cinema. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-263240/ Acesso em 16 de setembro de 2018.

Desempregado, Demien acaba encontrando uma oportunidade de trabalho como assistente de uma escritora bem-sucedida, autoritária e conquistadora. Alexandra (Marie-Sophie Ferdane), que exibe o seu automóvel Jaguar esperando com isso conquistar aos homens, seria a versão “femista” dele mesmo, antes da colisão com o poste. Ele aceita trabalhar para a escritora, movido também pelo interesse em conquistá-la. Alexandra demonstra rapidamente sua personalidade dominadora, tomando a frente na relação de conquista.

Uma vez que seu primeiro encontro naquele universo dominado pelas mulheres, acabou sendo malsucedido – a mulher em questão se recusou a tocá-lo, porque não havia depilado o peito – Demien busca o conselho de um amigo para lidar com as demandas estéticas. Uma das ênfases dadas na produção é a obsessiva “necessidade” de adequação estética imposta às mulheres, as quais se submetem a processos de depilação, controle da alimentação e atividade física, uso de cosméticos e tratamentos para a pele, para se aproximar dos padrões tidos como ideais. (PINSKY, 2014) A imposição de tais padrões se torna mais fácil de perceber, quando nos causa estranhamento que no universo da trama, os homens tenham de fazê-lo para se adequar aos valores da sociedade “femista”.

Historicamente o corpo das mulheres é tido como um lugar de posse, de controle e de investimento, que implica na sua regulação. Esta regulação compreende normas de comportamento e cuidados estéticos em que a própria sociedade desempenha o papel inquisitório. De acordo com Sueli Carneiro (1995), as consequências da produção contínua de padrões de beleza, que atualmente tem a mídia como principal veículo de circulação, podem ser particularmente nefastas para aquelas mulheres que não querem ou não podem se aproximar destes padrões. Neste ponto destacamos uma ausência importante nas reflexões apresentadas pela produção, pois as relações de gênero são apresentadas a partir do olhar de sujeitos brancos, heterossexuais e de classe média. Embora estejamos cientes de que se trata de uma comédia, cuja premissa precisa ser simples, entendemos que abordar os diferentes níveis de opressão a que estão submetidas as mulheres, considerando origem étnico racial, orientação sexual, expressão de gênero e classe social, suscitaria reflexões fundamentais e costumeiramente invisibilizadas quando se discute relações de gênero.

Após se adequar esteticamente, Demien consegue a aproximação com Alexandra e acaba contando sobre o “mundo” de onde veio. Ao ouvir seus relatos, a escritora, que vinha tendo dificuldades em escrever o último livro, resolve usar o que ela acredita serem devaneios como fonte de inspiração. Enquanto Demien se apaixona verdadeiramente, Alexandra mantém a relação com ele baseada no interesse por suas histórias.

Ao longo do romance, inúmeras situações em que os homens são discriminados, inferiorizados e submetidos à ordem “feminista” vigente, vão ocorrendo. É o caso do ato sexual, que privilegia o prazer feminino (lembrando que esta é a premissa do filme para criticar nossa sociedade que privilegia o masculino), a educação dos filhos e cuidados com a casa como tarefa inferior e de “natureza” masculina, a livre circulação das mulheres pelos espaços públicos enquanto os homens encontram restrições para circular em parte deles (como bares, parques, estádios, etc). (PERROT, 2012) Estas situações acabam levando Demien a integrar um grupo masculista, que milita pela igualdade entre mulheres e homens.

A gestação e o parto têm destaque na produção, pois embora haja uma inversão dos papéis sociais entre mulheres e homens, esta segue sendo uma função da mulher. No entanto, trata-se somente disso, gestação e parto. Equivale a dizer que em um universo onde as tarefas do lar, incluindo cuidar dos filhos, são atribuição dos homens, todo o romantismo que constitui a maternidade se apresenta esvaziado. O parto ocorre como uma função meramente fisiológica, parto natural, que dispensa o grande número de aparatos que temos atualmente, de maneira que possa facilitar o pronto retorno das mulheres às atividades profissionais, enquanto os homens cuidam dos recém-nascidos.

Tais passagens nos desafiam a refletir sobre como em nossa sociedade, a gestação e o parto foram atrelados ao cuidado com o bebê como tarefa imposta exclusivamente às mulheres. A autora Elisabeth Badinter (1985), ao discutir sobre os diferentes elementos que constituem a maternidade em nossa cultura, explica que todos estes rituais atrelados à questão reprodutiva feminina, impõem uma série de obrigações, inclusive aquela que a autora denomina de “mito do amor materno”.

Retornando à trama, em meio à tentativa de extrair de Demien o máximo de detalhes sobre sua vida anterior, Alexandra acaba se apaixonando. Ela desiste de usar seus relatos, abandona os outros homens com quem vinha saindo e lhe propõe casamento. Demien descobre as razões de sua aproximação inicial e decide se afastar. Desolado com o término, ele resolve beber em um bar, onde acaba sendo alvo de assédio e violência sexual. Alexandra fica sabendo que está em perigo e vai até o bar. Neste momento os dois discutem e acabam batendo a cabeça. O filme acaba neste ponto em que o mundo de Demien volta a se transformar, retornando ao que era e então o de Alexandra se inverte mostrando relações de gênero dominadas pelos homens e provocando nela o mesmo temor e estranhamento.

Referências

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Editora Record, 2003.

CARNEIRO, Sueli. Gênero, raça e ascensão social. Estudos Feministas, v. 3, n. 2, p. 544, 1995.

DA MATTA, Roberto. O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. In: Boletim do Museu Nacional. Nº27. Rio de Janeiro, 1978.

DARSIE, Camilo; SANTOS, Luís Henrique Sacchi. Espaço, paisagem e biotecnologia: promessas e realidades apresentadas no filme ‘a ilha’. Caminhos de Geografia, v. 13, n. 44, p. 249–255, 2012.

PERROT, MICHELLE. Minha história das mulheres. Tradução: Angela M.S. Corrêa. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2012.

PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. São Paulo: Contexto, 2014.

VEIGA-NETO, Alfredo. Usando Gattaca: ordens e lugares. In: TEIXEIRA, Inês A. de Castro, LOPES, José de Sousa M. (Orgs). A escola vai ao cinema. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.